WhatsApp e desentendimento no debate político

10/09/2020

Nos três primeiros textos desta série, que podem ser lidos aqui no site, falamos dos problemas de comunicação na história humana, na filosofia, na literatura; definimos os fenômenos atuais das fake news e da pós-verdade; e apresentamos o projeto dialógico de Habermas para o debate público; além da Análise do Discurso como ferramenta crítica para sermos menos ingênuos diante dos mecanismos de dominação presentes na linguagem.

Toda essa reflexão serviu para sustentar nossa argumentação de que as redes sociais, particularmente o WhatsApp, favorecem ruídos na comunicação que resultam numa "cegueira discursiva" que afeta a visão de mundo das pessoas. A cegueira discursiva, assim, é constituída por quatro elementos: 1) Debate de reproduções; 2) Não-resposta; 3) Ilusão deliberativa; 4) Reescrita da história. Neste artigo conclusivo da série, detalharemos esses elementos.

Debate entre reproduções: Nas discussões encontradas no aplicativo, em geral, não há uma elaboração própria do usuário. Ocorre o envio de material produzido por outras pessoas/fontes, num debate alienado. Acontece um "não-diálogo" entre reproduções (vídeos, áudios, figurinhas, fotomontagens, gifs e outras imagens). As pessoas replicam esses materiais que dizem "mais ou menos" o que elas pensam. E nesse "mais ou menos" está a raiz de grandes ruídos de comunicação, como diria a Raposa de Exúpery: "A linguagem é uma fonte de mal-entendidos".

Não-resposta: Devido aos muitos membros nos grupos, aos muitos contatos individuais "no privado"; e às excessivamente numerosas mensagens recebidas, as pessoas não têm tempo de ler/ouvir/ver/checar todas. Acabam dando respostas sem reflexão, ou não respondendo. Existe grande ansiedade, até com problemas de saúde - vale aprofundar o estudo sobre a epidemia de ansiedade no ambiente das discussões no WhatsApp. São frequentes as "saídas" dos grupos: "Fulano saiu". E por fim, grande parte das mensagens ficam "sem-resposta", os diálogos ficam interrompidos, a comunicação não se completa...

Ilusão deliberativa: A possibilidade de debater, politizar-se e crescer no entendimento das questões públicas é a grande expectativa de quem discute política no WhatsApp. Mas essa politização fica prejudicada e restrita devido à pós-verdade e às fake news, dando margem à cegueira discursiva, ou seja: as pessoas adquirem noções vagas, e ficam com a impressão de que se informaram, debateram e se politizaram. Daí uma crescente frustração ou um forte fechamento em opiniões prontas, sem abertura à busca do entendimento com quem pensa diferente.

Reescrita da história: Os três elementos acima geram um clima no qual as pessoas aceitam que a história possa ser reavaliada, como no livro 1984 (Orwell), crítica ao totalitarismo comunista de Stalin, em que o protagonista é um funcionário dedicado a reescrever os fatos registrados nos jornais. Em meio ao debate de reproduções, ao fenômeno da não-resposta, à ilusão deliberativa, e no interior privativo dos grupos de WhatsApp, isolado do jornalismo e da informação científica, são possíveis: os revisionismos históricos do tipo "não houve Ditadura no Brasil"; o negacionismo anticientífico, "o ser humano não chegou à lua"; "a Terra é plana"; "vacinas fazem mal à saúde" e o negacionismo antifactual, sobre números de mortos, casos e sobre a gravidade do Covid-19, por exemplo.

CONCLUINDO

A nossa elaboração de um conceito de cegueira discursiva, ao apontar os limites do WhatsApp como espaço de discussão política, não tem o objetivo de demonizar o aplicativo. São inegáveis os seus benefícios. Nosso objetivo, porém, ao alertar para os limites do mensageiro, é ajudar no resgate do que de melhor se alcançou: 1) Na experiência da Ágora e no Areópago gregos, que inspiraram nossa democracia; 2) Na liberdade de expressão iluminista; 3) Na proposta de diálogo político habermasiana de ação comunicativa na esfera pública; e 4) No benéfico equilíbrio de freios e contrapesos proposto pelo sistema dos três poderes, com destaque para os debates no Legislativo, entre outros projetos do legado democrático.

Não se trata de uma volta ao passado, mas de colher, nos acertos desses projetos políticos, a maioria deles em crise, aquilo que pode contribuir para um novo entendimento em busca do bem comum no espaço público. Obrigado a todos que chegaram comigo até aqui! Esperamos você para outras reflexões!