Fátima: o apocalipse segundo Renato Russo
Um registro da habilidade com que o compositor da Legião Urbana manejava o discurso religioso com estratégias de ratificação e desconstrução*
A cultura cristã atravessa os discursos dos setores mais influentes e também dos segmentos mais oprimidos da sociedade ocidental, constituindo-se numa marca quase onipresente. Mais particularmente, a cultura cristã católica, no Brasil, ganha contornos peculiares com apelo de todo um campo discursivo ligado a Maria, mãe de Jesus Cristo. As aparições de Nossa Senhora gozam de plena credibilidade diante da maior parte dos brasileiros, inclusive, muitos não católicos. A ela são atribuídas profecias, segredos de videntes, revelados somente aos papas, e a esperança das "causas perdidas".
O compositor Renato Russo (1960-1996) é conhecido por suas releituras do universo religioso, o que demonstra que, mesmo em sua eclética e sofisticada formação, não falta esse popular ingrediente discursivo. Ratificando e ao mesmo tempo desconstruindo, ele aborda tais temas com familiaridade reveladora de muito do que se diz - e principalmente do que se oculta - por meio dos discursos que se apropriam da religião.
Num exercício de Análise de Discurso (AD)¹, apontaremos, entre colchetes e em negrito, junto aos próprios versos de uma das suas composições, em parceria com Flávio Lemos, intitulada Fátima (1986), as referências nas quais emergem indícios de como nela se constitui o sentido. Tentaremos demonstrar como essa composição atribui significados múltiplos a uma relação presente, conscientemente ou subliminarmente, em cada brasileiro - essa relação está presente mesmo naquele que a nega/desconsidera pelo simples fato de considerá-la objeto de negação/desconsideração.
Apresentamos antes a composição sem as nossas observações a fim de dar ao leitor a possibilidade de fazer a própria interpretação, para depois passarmos à análise do texto.
Fátima
Vocês esperam uma intervenção divina
Mas não sabem que o tempo agora está contra vocês
Você se perdem no meio de tanto medo
De não conseguir dinheiro
Pra comprar sem se vender
E vocês armam seus esquemas ilusórios
Continuam só fingindo
Que o mundo ninguém fez
Mas acontece que tudo tem começo
E se começa um dia acaba
Eu tenho pena de vocês
E as ameaças de ataque nuclear?
Bombas de nêutrons
Não foi Deus quem fez
Alguém, alguém um dia vai se vingar
Vocês são vermes pensam que são reis
Não quero ser
Como vocês
Eu não preciso mais
Eu já sei o que eu tenho que saber
E agora tanto faz
Três crianças sem dinheiro e sem moral
Não ouviram a voz suave
Que era uma lágrima
E se esqueceram de avisar pra todo mundo
Ela talvez tivesse nome e era Fátima
E de repente o vinho virou água
E a ferida não cicatrizou
E o limpo se sujou
E no terceiro dia
Ninguém ressuscitou
Vídeo da versão interpretada pela banda Capital Inicial:
Versão interpretada por Renato Russo, na época em ele liderava o grupo Aborto Elétrico:
Análise da canção
"Vocês esperam uma intervenção divina /Mas não sabem que o tempo agora está contra vocês /Você se perdem no meio de tanto medo" [O locutor assume posição profética, apocalíptica e de distanciamento, como quem exorta um interlocutor de quem está isolado e com quem não compartilha os destinos/desventuras. O verso "O tempo agora está contra vocês" indica o ciclo típico dos discursos apocalípticos: denúncia da corrupção humana - ira divina - redenção - volta à situação de corrupção].
"De não conseguir dinheiro / Pra comprar sem se vender" [A cultura católica se manifesta atribuindo valor negativo ao dinheiro, ligando-o à corrupção. Vale aqui a menção ao fato de que a condenação do dinheiro não é tão presente na cultura cristã de origem protestante, conforme assinala Max Weber na conhecida obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo²].
"E vocês armam seus esquemas ilusórios / Continuam só fingindo /Que o mundo ninguém fez / Mas acontece que tudo tem começo / E se começa um dia acaba" [O discurso criacionista alega a origem divina do mundo e denuncia a soberba do homem - "fingindo que o mundo ninguém fez" - , prevendo o fim da humanidade devido à maldade humana. Isso nós percebemos claramente a partir do que se diz por meio do "não dito" - na música não é citado personagem ou trecho bíblico - uma marca oculta que as ferramentas da Análise do Discurso ajudam a desvendar].
"Eu tenho pena de vocês" [O elemento discursivo da misericórdia divina comparece, ainda que em forma de ironia, mas indicando a possível redenção]
"E as ameaças de ataque nuclear?/ Bombas de nêutrons / Não foi Deus quem fez" [Aqui o locutor convoca as formações discursivas (cultural) tecnológica (bomba de nêutrons) e militar (ataque nuclear), também bastante influentes nas sociedades ocidentais, com uma associação ao fim do mundo, que já foi o maior temor da humanidade e que não estava longe das pautas da opinião pública na década de 1980, quando a canção foi composta].
"Alguém, alguém um dia vai se vingar" [O "fogo" e o calor de explosões radioativas poderiam ser um fim do mundo bem de acordo com o Gênesis. Há interpretações de que, no Capítulo 9, Deus prometera, após o Dilúvio, não destruir mais o mundo por meio da água].
"Vocês são vermes pensam que são reis / Não quero ser / Como vocês /Eu não preciso mais /Eu já sei o que eu tenho que saber / E agora tanto faz" [No trecho que segue abaixo, o locutor abandona a posição discursiva inicial, afirmativa da formação cristã de viés apocalíptico. Introduz um novo sujeito enunciador que, por sua vez, adota uma estratégia de desconstrução desse mesmo discurso. Com a entrada do novo sujeito, o texto termina na impossibilidade de se completar o ciclo típico dos relatos apocalípticos a que nos referimos anteriormente, já que o desfecho elimina o estágio da redenção ("Ninguém ressuscitou"). Vale ressaltar a presença do intertexto³ - já anunciado no título da canção - relativo às aparições da mãe de Jesus Cristo relatadas por três crianças, em 1917, na cidade portuguesa de Fátima.]
"Três crianças sem dinheiro e sem moral / Não ouviram a voz suave / Que era uma lágrima / E se esqueceram de avisar pra todo mundo / Ela talvez tivesse nome e era Fátima / E de repente o vinho virou água / E a ferida não cicatrizou / E o limpo se sujou / E no terceiro dia / Ninguém ressuscitou".
* Este texto foi publicado em 16 de junho de 2012 no https://marcellobenites.blogspot.com/
NOTAS:
1 - Análise do Discurso (AD), vertente da Linguística, surgida por volta dos anos 1960 - mas com precursores antecedentes - que investiga não o conteúdo dos discursos presentes na sociedade, mas as condições de produção desses mesmos discursos, em sua inscrições sócio-históricas, com base na linguística estruturalista, na psicanálise e no marxismo.
2 - A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo "vincula o nascimento do capitalismo à doutrina calvinista da predestinação e à consequente interpretação do êxito material como garantia da graça divina". (4ª capa da obra na edição da Martin Claret, 2001).
3 - Intertexto é como a Análise do Discurso nomeia a presença de outros "textos" num mesmo texto, de outros discursos num mesmo discurso. Para a AD, nunca falamos sozinhos. Sempre há outros discursos em nosso discurso. Segundo Helena Nagamine Brandão, em "Introdução à Análise do Discurso" (Editora da Unicamp, 2004), "intertexto de um discurso compreende o conjunto de fragmentos que ele [esse discurso] cita efetivamente".