Existe uma boa direita - Parte II
No último post, sustentei a possibilidade de haver, para nós de esquerda, uma "boa direita", ou seja, uma direita com a qual seja possível dialogar. Esclareci que, na minha opinião, liberais e conservadores estão sempre no espectro da direita, embora conceitualmente, nas ciências políticas, os primeiros possam ser considerados à esquerda.
E apontei valores da direita que considero autênticos - e aqui estamos falando de ideias e autores clássicos, não de práticas políticas atuais: remuneração justa aos trabalhadores; sentimento de pertença social; compromisso com gerações próximas e futuras, e com a comunidade; direitos das mulheres; e até ressalvas de Adam Smith quanto à "mão invisível" do mercado como garantidora natural e infalível da distribuição da riqueza.
Antecipei, ainda, uma reflexão que desenvolverei melhor ao final da terceira e última postagem desta série de artigos: mesmo se existe uma direita com valores autênticos com os quais as esquerdas podem dialogar, essas qualidades não estão presentes no atual do governo federal, muito menos nas atitudes do presidente.
Reformar a sociedade
Sempre lançando mão do livro "Conservadorismo: um convite à grande tradição", do importante influenciador da direita contemporânea, Roger Scruton, cito agora o mais relevante filósofo político conservador, o irlandês Edmund Burke (1729-1797). Ao sustentar que a tradição deve ser conservada, mas "não em todas as particularidades", Scruton cita Burke: "Precisamos reformar a fim de conservar". A palavra "reformar" acaba sendo estratégica para a visão de qualquer direita (conservadora ou liberal) sensata a ponto de admitir que a sociedade precisa se aprimorar quanto à justiça social.
Tolerância religiosa
Burke é acusado por alguns como defensor da desigualdade. Entretanto, apesar de ter sido educado na religião protestante, sustentou pontos de vista impopulares em seu país e em sua época, como a emancipação dos católicos, tendo sido também contra a pena de morte. Vejo sua crítica profética ao Terror na obra "Reflexões sobre a revolução na França" como um manifesto em defesa da não violência. Aqui, é importante admitir, entra uma forte dificuldade para o diálogo com esquerdas apoiadoras da ideia de que situações injustas não mudam sem violência.
Liberdade de expressão
Outro ícone da direita, Alexis de Tocqueville (1805-1859) criticava igualmente a Revolução Francesa, dizendo que ela havia traído seus ideais democráticos e, ao invés de abolir injustiças classistas, acirrou os conflitos entre as classes e aumentou os privilégios das mais altas. Ele defendeu uma democracia nos moldes da que vinha sendo construída nos Estados Unidos, baseada na tradição, na igualdade dos fundadores que para lá migraram e nem sempre foram ricos, e na liberdade de expressão.
Legitimidade e consentimento
Outra nota interessante sobre o pensamento político conservador é a defesa de que os governos devem ser legítimos e ter o consentimento do povo. Essa ideia de legitimidade e consentimento é frisada por Roger Scruton e parece bem crítica a um reacionarismo no qual o governo possa fazer o que quiser.
Freios e contrapesos
Também entra como contribuição conservadora a divisão dos três poderes, de Montesquieu (1689-1755). E segundo Roger, Thomas Jefferson (1742-1826), um dos pais fundadores dos EUA, frisa o aspecto dos "freios e contrapesos", dinâmica na qual Judiciário, Legislativo e Executivo podem evitar abuso do poder uns dos outros, em defesa da sociedade.
Solidariedade, benevolência e justiça
O escocês David Hume (1711-1776) é outra fonte fundamental do conservadorismo. E o que Scruton menciona a respeito dele é mais um ponto de diálogo: "(Hume) identificou os principais sentimentos envolvidos na criação da ordem política como solidariedade e benevolência, e afirmou que a ideia de justiça era essencialmente derivada deles".
O "Grande Debate" entre Burke e Paine
Não é o meu objetivo fazer um levantamento exaustivo, e não será possível citar muitos autores fundamentais, mas não poderia faltar nessas considerações sobre uma boa direita a menção ao inglês Thomas Paine (1737-1809). E aqui entra o acirrado confronto de liberais contra conservadores. Ele é simbolizado pela disputa entre Paine e o já citado Burke, conhecido na direita como "O Grande Debate" - curiosamente, esse é o nome do famoso programa da CNN (em breve pesquisa não encontrei registro sobre ligação proposital do nome com a linha da emissora, mas parece-me óbvia).
É bastante balizadora e pedagógica, enfim, a definição dos dois pensadores: Paine como o que se posiciona mais à esquerda dos liberais, sem ser socialista, e Burke, como aquele que se coloca mais à direita dos conservadores, sem ser reacionário. O liberal migrou para os EUA depois de perder o emprego após liderar manifestações por melhores salários e condições de trabalho. Lá, seu livro clássico "Senso Comum" foi importante manifesto revolucionário.
Ao voltar para a Inglaterra, ele foi considerado subversivo com sua obra "Os direitos do Homem". Fugiu para a França e contribuiu para a revolução, mas foi preso por oposição aos jacobinos, ao Terror e à execução do rei Luís XVI, e por pouco escapou da guilhotina. Após ser libertado, e de volta aos Estados Unidos, caiu no ostracismo por rejeitar a religiosidade convencional. Por sua vez, Burke sempre criticou os ataques de Paine às instituições que, em seu ímpeto revolucionário, queria transformar.
Mises e Hayek
Voltemos a Scruton e ao pensamento econômico, avançando no tempo para falar dos austríacos Ludwig von Mises (1881-1973) e Friedrich Hayek (1899-1992). "Somente em um mercado livre, argumentaram Mises e Hayek, estão disponíveis as informações que permitem que jogadores individuais disponham racionalmente de seu orçamento. Pois somente em um mercado livre os preços fornecem um guia para as necessidades econômicas dos outros", escreveu Scruton.
Tal definição não encontra crítica da esquerda suficientemente difundida e influente na opinião pública. As ideias de Mises e Hayek sustentam a atual hegemonia do pensamento contrário às economias planejadas que os regimes comunistas tentaram implantar. À parte reflexões sobre a irresistível pressão dos EUA contra essas tentativas, parece convincente o argumento sobre liberdade e espontaneidade dos indivíduos. Aqui cabe, claro, a ressalva sobre o pouco conhecimento existente no Ocidente acerca dos motivos do sucesso da poderosíssima economia da China comunista.
No próximo e último artigo da série "Existe uma boa direita" vou abordar o debate entre a proposta dos investimentos públicos de Keynes versus o estado mínimo de Friedman e ainda a Teoria da Justiça, de Rawls. Espero contar com a leitura e comentários de vocês que me acompanharam até aqui.