Esfera pública, ação comunicativa e Análise do Discurso

09/09/2020

Nos dois últimos posts, fizemos um breve histórico dos problemas humanos da incomunicabilidade desde a mitologia grega até nossas atuais redes sociais, com as fake news e o fenômeno da pós-verdade. Vocês podem acessar as duas postagens aqui na minha página. A ideia desta série de quatro artigos é mostrar como hoje a discussão política nas redes sociais, especialmente no WhatsApp, é caracterizada por uma "cegueira discursiva".

Neste terceiro texto, falaremos do conceito de esfera pública concebido pelo filósofo contemporâneo da Universidade de Frankfurt, Jürgen Habermas. Ele afirma que o espaço público é formado por lugares (parlamentos, cafés, bares e outros onde se discuta política) privilegiados para a busca do entendimento comum, um consenso que satisfaça minimamente a todos. Segundo o filósofo, esse consenso seria atingido por meio de uma "ação comunicativa", resultando no entendimento entre as partes. Mas para isso devem ser atendidos alguns critérios chamados por Habermas de "condições ideais de fala", entre as quais destacamos: 1) quem se comunica não deve ser constrangido; 2) cada interlocutor deve dizer o que realmente pensa.

Ressaltamos que nossa leitura do filósofo não é direta, mas a fazemos por meio de capacitados comentadores. A pesquisadora e professora de Comunicação da UFMG, Rousiley Maia, em um ensaio apresenta a internet como esfera pública virtual por fazer circular material de origem "não oficial", reduzir os "custos da participação política" e envolver diferentes "parceiros de interlocução numa base cidadão-cidadão". Habermas dizia que a imprensa era a "esfera pública abstrata", portanto, a partir daí, a internet também se afirma como esfera pública de deliberação habermasiana. Rousiley, entretanto, alerta contra o risco da web como espaço para os totalitarismos.

NÃO DEBATER APENAS PARA "LACRAR" NA DISUSSSÃO

Já o professor do mesmo curso, na Faculdade Casper Líbero (SP), Luís Mauro Sá Martino, no livro Teoria das mídias digitais: linguagens, ambientes e redes, ressalva o elemento ético da esfera pública: a premissa deve ser a busca do entendimento mútuo e não a vitória a qualquer custo no debate. Justamente essa é a diferença que Habermas faz entre "ação comunicativa", voltada ao entendimento, e "ação estratégica", voltada estritamente para a derrota do interlocutor. E aqui eu pergunto: não dá para imaginar isso, nas discussões do WhatsApp, quando alguém utiliza um argumento que não tem nada a ver com o tema em questão só para "lacrar", ou seja, massacrar quem está do outro lado no debate?

ANÁLISE DO DISCURSO: PORQUE EXISTE ESSA FALA?

A Análise do Discurso de origem francesa é a nossa metodologia, que se abrevia como AD. Ela cerca o fenômeno da linguagem a partir da interdisciplinaridade entre linguística estrutural, marxismo e psicanálise. E é interessante perceber como a AD, mesmo tendo matriz em parte marxista, expõe as motivações dos discursos não só de direita, mas também os de esquerda - pena que aqui não há espaço para dar exemplos, mas quem quiser pode me procurar nas redes sociais para aprofundarmos o assunto. O fato é que a AD não busca desvendar um discurso, "revelar" o que ele significa, mas "por que" ele existe, "por que" ele é apresentado, e em que condições é produzido.

O sujeito da AD não é o sujeito do Iluminismo, senhor do seu discurso, fonte de sua própria fala, alguém que fala o que pensa e quer. Ele é, sim, o sujeito da psicanálise, portanto, um sujeito descentrado, que "mais é falado pelo discurso do que fala por meio do discurso". A ideia aqui é que, quando falamos, primeiramente quem fala é a nossa classe social, nossa família, nossa cultura profissional, nossa ideologia etc. Qualquer semelhança com as discussões nos grupos de família, igreja e trabalho não é mera coincidência... Muitas vezes compartilhamos ou aplaudimos notícias das quais gostamos, com ideias com as quais concordamos, mesmo sem saber se são verdadeiras, não é mesmo? Eu confesso que sou desses, ou pelo menos, que já fiz dessas, embora me esforce para dialogar mais racionalmente.

ASSUJEITAMENTO IDEOLÓGICO E DUPLO ESQUECIMENTO

Daí vêm dois conceitos da AD que indicam fenômenos verificáveis nos debates das redes sociais. Um deles é o assujeitamento ideológico ou interpelação ideológica, cunhado por Louis Althusser na obra Aparelhos Ideológicos do Estado. Althusser sustenta, que antes de qualquer pronunciamento, somos "interpelados ideologicamente como sujeitos". Ou seja, nos colocamos no mundo inevitavelmente submissos a essa interpelação ideológica.

O outro conceito é o "duplo esquecimento", elaborado por Michel Pêucheux, que aqui lembro a partir de Eni Orlandi em "Análise do Discurso: Princípios e Procedimentos". Segundo ele, quando falamos, no decisivo momento em que tomamos a palavra, esquecemos: 1) que não somos a fonte única do nosso próprio discurso e; 2) que nosso discurso não tem, necessariamente, uma ligação direta, objetiva, com a realidade.

Concluo então essa reflexão sobre a Análise do Discurso propondo uma pergunta. Será que não é por causa desses esquecimentos que muitas vezes postamos algo sobre política e nos arrependemos logo em seguida, ou que, mesmo sem todo esse drama de consciência, nos surpreendemos ao ver que nossos posts provocam reações de parentes, amigos e conhecidos que nunca imaginaríamos? Do lado de lá, as pessoas também se esquecem...

No próximo e último post, detalharemos os elementos frequentes nas disputas políticas no WhatsApp e que constituem o que chamamos de cegueira discursiva: 1) Debate de reproduções; 2) Não-resposta; 3) Ilusão deliberativa; 4) Reescrita da história. Aguardo vocês para dialogarmos!