A série 3%, da Netflix, mostra que a meritocracia funciona

02/09/2020

Escrevo sobre essa série brasileira de sucesso internacional da Netflix a três episódios do final e sem ter lido nenhuma crítica a respeito (acho que não darei spoilers, pois mencionarei o que apareceria numa sinopse). O seriado 3% é uma poderosa metáfora sobre o nosso mundo. 

É a história distópica, após a humanidade destruir o planeta, de um "Continente" onde a vida é horrível e no qual só essa pequena porcentagem de pessoas conseguem chegar ao "Maralto", ilha em que prosperidade, ciência e tecnologia produzem uma existência feliz. Mas o admirável mundo novo - que na série substitui o Céu cristão - só é acessível aos jovens de 20 anos, e a partir do "Processo", uma série de provas, muitas vezes cruéis, que lembram sagas como Divergente, Maze Runner e Jogos Vorazes.

E onde está a metáfora, a comparação com nossa sociedade e a explicação da meritocracia? Quem viveu a adolescência e a juventude nos anos 1980 tinha na época apenas a vaga noção do que era a seleção social. Ela se concretizava também no rito de passagem do vestibular, como nos alertaram Renato Russo e os Paralamas do Sucesso na música "Química". Mas também muitos de nós não imaginávamos que já tínhamos sido poupados de um "Processo" cruel desde o nascimento. E isso se evidenciava pelo simples fato de termos concluído o nível médio - num país onde educação sempre foi luxo. Hoje, o Enem torna ainda mais terrível essa seleção.

Mas nós nos sentíamos realmente "merecedores", expressão usada em 3% como característica dos virtuosos. "Merecedor" é no universo do "Continente/Maralto" a condição virtuosa, assim como na Bíblia é a do "justo" e para os gregos antigos era a do "cidadão". E aí a série tem o mérito de nos incomodar, lembrando-nos a cultura dos testes e provas a que vivemos expostos, dos mais diversos reality shows aos concursos tipo "master chef", onde a individualidade e a solidariedade são massacradas porque apenas os "melhores", os "merecedores", avançam.

Isso na esfera pessoal. Na da coletividade, a trama é brilhante em apresentar a mística e a ética do "Processo", que podemos comparar com a da meritocracia. Os competidores são chamados a repetir: "Agradecemos pela oportunidade!". É todo um universo de 97% de pessoas em sofrimento dando respaldo e justificando - ao cultuar uma competição ridícula - a existência de uma população mínima que vive em pleno bem-estar e depende da maioria. Depende por que o Maralto precisa dos jovens do Continente para seu controle populacional, uma denúncia de como os sistemas de produção artificial de felicidade sem dor são, na verdade, contra qualquer tipo de vida livre e se baseiam em opressão.

Por fim, é trágico ver como se aplica à nossa realidade a existência na série de uma religião que cultua o Processo como um deus e o Maralto como o Paraíso. Faço uma pausa para ressaltar que tenho religião e a vejo como caminho de felicidade minha e dos outros, e de transformação do mundo presente. Mas em 3% a religião é utilizada como muito frequentemente acontece na vida real, para ocultar processos de exclusão e as ilusões de um mérito que em 97% dos casos (porcentagem metafórica) já é concedido quando as pessoas nascem.

A meritocracia funciona.